sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Desaprendendo

Tashi delek", "Sabaai dii", "Xin chào", "Ni hao", "Namastê", "Mambo", estas são apenas algumas das formas de dizer um simples "Oi" nos idiomas dos países por onde andamos. É claro que, por mais viajante CDF que o cara seja, uma hora cansa ou falha o idioma local e, sem outra saída, apela-se pra Lingua Franca do turista: o inglês.

Pensando nisso, um tempo atrás, decidi que queria uma empreitada intelectual diferente.

Existe um site, uma rede social, chamada 43 Things que serve para as pessoas socializarem seus pequenos projetos futuros de vida e compartilharem as experiências passadas, ou seja, as benesses e dificuldades de quem se aventurou. Numa sociedade cheia de gente insegura lutando contra o anonimato, não é de se surpreender, portanto, que uma das realizações mais populares sejam "escrever um livro", uma celebrada e clássica forma de assegurar que sua vida valeu alguma coisa ou que você é um intelectual; em suma, que você é "especial". Lá nos primeiros lugares figura também, evidentemente, perder peso, provavelmente consequência da mesma insegurança acrescida do latente narcisismo e da pressão midiática pelos modelos de beleza do ocidente. Considerando que a maior comunidade ativa é estadunidense, não me surpreende, por fim, que uma grande parte deseje aprender um outro idioma, quem sabe como um pedido mudo de desculpas pela ignorância coletiva da classe média do país sobre qualquer coisa que tenha a ver com o resto do mundo.

O fato é que um tempo atrás entrei neste site para conhecê-lo e resolvi tentar me propor um objetivo um pouco diferente: Esquecer um idioma; esquecer o inglês. Ainda não consegui.

Esse propósito me voltou à cabeça fortemente na última semana, quando fomos conhecer os arredores de Hanoi, capital do Vietnã, mais especificamente, Halong Bay. Ok, confesso que para a empreitada comprei um pacote: 3 dias e duas noites, com caiaque e tudo. Halong Bay é uma sensacional baía em que ilhas rochosas cobertas de verde brotam magicamente no mar - uma concorrente ao título de maravilha natural do mundo. Então fomos nós de pacotão conhecer a maravilha.

Assim como nós, outros viajantes - empareados, sozinhos ou de galera - optaram pelo mesmo serviço, totalizando um grupo de 15. Conhecemos um grupo de molecada ausie, um simpático Maltês e um boxeador maluco estadunidense, entre outros, mas quem mais me chamou a atenção foi um tiozinho solitário e risonho que sempre aparentava estar perdido ou distraído. Discreto e calado, só interagia através de sorrisos e movimentos com a cabeça; e onde o grupo ia, seguia. Mesmo assim, parecia que seu silêncio tinha algo de sagrado.

Descobri, pelo passaporte, que era coreano. Percebi, pela atitude, que não falava inglês.

No meio dos mares de turistas que invadiam a baía em um interminável fluxo de réplicas do que seria a caravela vietnamita, liderados no sensacional e macarrônico inglês monossilábico dos guias vietnamitas, percebi a sorte do tiozinho: não tinha que ouvir os adolescentes australianos exagerando as piadas; nem o boxeador fortão exagerando as mulheres; tampouco compreendia os turistas da alta burguesia indiana forçando o inglês com seu inconfundível sotaque - em vez de hindi ou uma de suas 13 línguas oficiais, só porque falar inglês é chic. Sobretudo não era obrigado a escutar o maltês e eu falando mal dos australianos, indianos ou do estadunidense.

Alheio a tudo o que era palavra, o tiozinho, com a maior cara de satisfação, curtia a paisagem, bela, imponente, sem distúrbios, sem assunto que não a natureza em torno. Todo aquele inglês vazio que dominava o ambiente, para ele, significava tanto quanto o motor do barco e o tiozinho seguia olhando a paisagem, risonho.

Ah, como eu quis, ainda que por um dia, desaprender o inglês! Claro que eu seria obrigado a me comunicar em mil outros idiomas quando no estrangeiro; seria obrigado a gesticular, a fazer mímica para me explicar em muitos destes países; seria obrigado, talvez, a mudar de profissão; seria obrigado a esperar o próximo sensacional livro do Dan Brown ser traduzido - ou me contentar com Paulo Coelho para meus momentos de fraqueza intelectual; seria obrigado até a contratar o amigo Klauss para traduzir um texto.

Mas, sem dúvida, seria uma experiência interessante, ainda que por um dia, desconhecer por completo o universo do onipresente inglês, idioma universal do turista e, como o tiozinho, me resignar a contemplar em silêncio mais uma das tais wonders of nature.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Cultura ou Usura?

Deixamos Mui Ne, no litoral sul vietnamita, enjaulados em um assento-cama claustrofóbico em que sequer se podia viajar sentado, cercados de estruturas metálicas, no que estava mais para um bagageiro que para um passageiro. Seis horas e seis cãimbras mais tarde, descemos na cidade de Nha Trang - um apanhado de resorts pra gringo que não nos interessou parada mais séria - para trocar de ônibus - teoricamente um veículo melhor para passar a noite - para seguir direto à colonial Hoi An, acertadamente apelidada pelos amigos Zero e Aline de "Parati Vietnamita". Dez horas de viagem nos esperavam pela frente. Vacinados pela experiência da jaula do primeiro trecho - em que fomos os últimos a embarcar -, corremos na primeira chamada e pegamos, se não o melhor dos lugares, assentos aceitáveis. Logo depois demos conta que quem não correu ficou sem. Pois é: overbooking no ônibus.

Isso seria irrelevante se os que ficaram de fora não fossem, todos, grupos de vietnamitas com crianças voltando às suas cidades natais para celebrar o Têt - ano novo do calendário lunar - com suas famílias. Na verdade este detalhe também seria irrelevante se a companhia de ônibus houvesse dado solução decente ao impasse em vez de tentar arrancar com o ônibus. O resultado foi osso-duro: os caras deitaram na frente do ônibus para evitar a partida, tipo desobediência civil. Fiquei imaginando - com dó dos combatentes teenagers estadunidenses arremessados aqui nos idos de 60 e 70 - do que esse povo é capaz quando o assunto é soberania nacional.

Detalhes à parte, o impasse seguiu por cerca de três horas, independente de nossas infames tentativas de mediação, mais ou menos incisivas, mais ou menos inflamadas. No frigir dos ovos, ainda mantendo o humor, resolvi sentar no assento do ônibus fingindo que iria tomar o lugar do motorista e levar o ônibus adiante, uma piadinha que me parecia cabível. Qual não foi minha surpresa quando o motorista original me puxou do assento e me empurrou contra a parede do ônibus com tamanha brutalidade que, impulsivamente, o empurrei de volta e o clima esquentou, ambos com punhos cerrados...

Viajar é, entre tantas outras definições - provavelmente melhores que a seguinte - buscar intersecção entre culturas, acrescentar novos costumes à própria cultura ou ainda apenas conhecer e procurar respeitar a diferença. É impossível, no entanto, quando em ambientes desconhecidos, evitar completamente os conflitos. Eles acontecem, por vezes não se sabe nem donde vieram nem se pode prever os desdobramentos. O tal conflito pode ser consequência de choque entre culturas - um simples cafuné pode ser gentil no Brasil e ofensivo na Tailândia; ou pode ser simples ignorância dos hábitos locais - deixar os calçados ao entrar em um templo é algo tão óbvio no oriente como usar papel higiênico no ocidente.

Em suma, muitos possíveis - e, em alguns casos, prováveis - conflitos são consequência de "diferenças culturais" entre visitante e visitado.

No entanto, de tantas definições que viajar pode ter, uma coisa é certa: viajar não é um parênteses. A vida continua enquanto a gente viaja, e conflitos normais do dia a dia podem surgir em lugares que não em nossa casa, nosso trabalho, nossa cidade. Isto é verdade particularmente no caso de uma longa jornada em que viajar torna-se rotina após alguns meses. Dinâmica; não obstante, rotina. Aquela paciência extra do turista de férias, pronto a relevar o atraso do avião, o pedido que veio errado no restaurante ou a falta de água quente no banheiro, tudo em prol de "não esquentar a cabeça para não estragar os poucos dias de férias", vão pro beleléu no segundo mês de uma viagem mais extensa.

Muitas vezes a primeira reação pode ser excessivamente ativa - levar o conflito a sério sem medir a circunstância com cautela - ou excessivamente passiva - jogar a culpa de tudo nas chamadas "diferenças culturais", bode expiatório favorito do viajante.

O segredo para nós tem sido buscar o discernimento, diferenciar o diferente do folgado, o diferente do grosso, o diferente do sacana, o diferente do malandro, o diferente do bandido. Inclusive porque muitos se apóiam neste discurso para enganar o turista: "Ah, aqui é assim que funciona! Pague mais 10 dólares" - aproveitando que o turista é, afinal de contas, apenas um turista, com seu conhecimento superficial de (Not-So) Lonely Planet sobre o país.
O visitante, ao deparar-se com um conflito como tais, deve sempre manter a calma e diagnosticar cautelosamente, procurando identificar a tênue linha entre o que é Cultura e o que é Usura.

E, muitas vezes, humildemente, por a viola no saco e pedir sinceras desculpas, preferentemente no idioma local, em troca, quiçá, de mais um amigável sorriso vietnamita de um cozinheiro, monge ou um motorista de ônibus.

A Foto do Feto

Em um prato de porcelana muito do humilde, a vietnamita organiza pacientemente folhas de hortelã, enquanto o irmão prepara um molho de soja com pimenta. Em seguida, ela dispõe os dois pauzinhos e um guardanapo na mesa, enquanto o irmão picota, com uma tesoura por instrumento, um feto de pato caramelizado no meu prato.

Eu havia saído só, bancando de agente de turismo, para organizar os próximos dias, enquanto a Maca, de molho curava uma gripe - lembrança de inverno das montanhas na fronteira com a China. Meu passeio não tinha, portanto, grandes ambições culturais, até que, após comprar ingresso para o famoso teatro de marionetes na água de Hanoi, os avistei: pequeninos, alinhados lado a lado em uma barraquinha ambulante, os fetos de pato, famosa iguaria regional, chamavam a atenção pela cor forte e pelo aspecto, não precisa nem dizer, pouco convidativo.

Convidado ou não à ocasião, perguntei o preço como quem faz isso todo dia, esforçando para conter algo que não sei se chegava a ser ansiedade ou apenas ânsia...

Estranho foi que, após tanto tempo viajando grudado à Maca, estar sozinho experimentando uma bizarrice destas pareceu experimento incompleto. Torci para passar um conhecido. Vi umas israelitas que havíamos trocado duas palavras num restaurante e quase chamei para testemunhar, tirar foto e mandar por e-mail e tal. Foi quando me dei conta que a minha inquietação era porque não tinha como registrar a aventura com uma câmera, havia deixado no hotel. Sorte dos mais sensíveis; e da Maca, que talvez nunca aceitasse meus lábios de volta.

Mas o que ficou rondando minha cabeça, enquanto testava minha destreza nos palitinhos mergulhando meu lanche no molho de soja com pimenta, foi a infantil necessidade que senti de registrar o feito, digo, o feto, com uma foto.

E ponderei: que doença é essa que nos atinge? Por que a gente tem que tirar uma foto, mostrar pra todo mundo? Afinal, experimentamos, viajamos, criamos, pensamos, trabalhamos para os outros ou para nós mesmos?

Quando cursamos uma faculdade ou um curso, recebemos um diploma atestando, para fins legais, a aprovação, demonstrando à sociedade que você, dentro das regras vigentes, é capaz de exercer aquela profissão. É uma evidência legal - pendura-se o diploma de pele de carneiro na parede para sustentar o argumento e o ego do profissional. Da mesma maneira, quando "conquistamos" o Kilimanjaro, recebemos um simpático diplominha com o feito. É um atestado, no entanto, que não serve para nada senão para mostrar pros netos. Afinal, o que um diploma acrescenta em uma jornada sumamente pessoal?

No caso do feto, a evidência, o diploma, era a foto que não tirei. A dúvida foi: para quê ou para quem eu estava me aventurando? Lembrei de quando critico o turista chinês que consome os lugares por onde passa como se cada foto fosse uma missão cumprida e a viagem fosse uma contínua To do List (lista de "Coisas a fazer"). É como se não havendo foto não houvesse visita, não houvesse evidência, atestado, diploma para mostrar à sociedade.

Concluo o raciocínio me desligando da câmera e me concentrando no prato e no pato. Desfruto inteiramente seu exótico sabor sem dar mais satisfação e parto contente de volta à ordem do dia: comprar passagem para o Laos.

Agora, no entanto, quando penso novamente em todos estas reflexões sobre a foto do feto, orgulhoso de ter superado o feitiço da fotografia, percebo, um tanto atordoado, que acabo de registrar o feto com um texto.Ao menos a feição do prato eu deixo para a imaginação de vocês.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Atravessando a Rua, Cruzando o Mundo

Atravessar uma simples rua em Ho Chi Minh City (vulga Saigon) é um verdadeiro ato de fé. É colocar-se à mercê de mil motonetas e bicicletas zunindo na mão e contramão, no farol verde ou vermelho; à mercê de motoristas nunca antes vistos e que você certamente nunca verá de novo na metrópole de quase 10 milhões de habitantes. Por irrelevante que pareça, é um pequeno ato cotidiano que simboliza uma das diferenças fundamentais de estrutura de pensamento entre oriente e ocidente. Ou, ao menos, entre São Paulo e Sai Gon.

A sociedade ocidental vem corrompendo, há séculos, a idéia de comunidade. É um processo de viagem egótica que começa pelo enfraquecimento do Estado como provedor dos subsídios fundamentais ao cidadão e culmina na desestruturação familiar, seja no excesso de divórcios, seja no hábito de mandar os filhos pro mundo com um sonoro "se vira" após a maioridade. Dou exemplos: os estadunidenses estão acostumados a cursar faculdade em qualquer estado salvo o estado natal, com um propósito de uma espécie de liberação exacerbada ou puberdade tardia - em uma sociedade hipócrita em que, com menos de 21, é muitas vezes mais fácil acessar maconha, coca ou crack que cerveja; os europeus vão trabalhar de garçom, gari, secretária, empacotador de supermercado, qualquer coisa para financiar sua faculdade, vivendo sozinho a partir dos dezoito; na América Latina a família persiste a duras custas, pai e mãe custam a desprender do rebento, mas quando o filho emancipa, é sempre "um orgulho".

Qualquer que seja a forma que toma, este processo de emancipação do indivíduo nas sociedades capitalistas do ocidente leva o sujeito a reforçar o egocentrismo como estratégia de sobrevivência, ratificando o futuro que se espera dele. É uma sociedade em que ninguém pode depender de alguém. Ou, em termos mais popularescos, é "cada um por si".

Neste contexto, o indivíduo se sente compelido a controlar o ambiente em volta, sob pena de, se não o fizer, ser controlado por outrem. Me apoiando novamente na cultura popular: se você não sabe quem é o trouxa na roda, o trouxa é você. É uma crise generalizada do altruísmo e da confiança no próximo, provavelmente consequência do anonimato bastante próprio da metrópole e do hedonismo que Baudelaire celebrava na figura do hedonista dandi na Paris do século XIX.

E o oriente?

A religiosidade vietnamita é uma fusão de taoísmo com filosofia budista e uma boa pitada dos ensinamentos confuncionistas. Confúncio dizia que para governar um reino, há de se ordenar os estados; para ordenar os estados, há de se regular a família; para regular a família, há de se cultivar a pessoa; para cultivar a pessoa, há de se rectificar o coração; para rectificar o coração, há de se ter pensamentos sinceros; para ter pensamentos sinceros, há de se estender o conhecimento ao máximo; para estender o conhecimento, há de se investigar as coisas. Logo, investigando as coisas, estende-se o conhecimento, que leva a pensamentos sinceros, e assim por diante, para por fim ilustrar o reino com virtude.

O caminho proposto por Confúncio parece, à primeira vista, o caminho do individualismo ("cultivar a pessoa"), mas o fim proposto, coletivo, é o de se regular a sociedade justamente. O propósito do trabalho de Confúncio é promover a ética no Estado, em qualquer Estado, por isso, em determinado momento, o sábio dedicou sua vida a viajar oferecendo seus conselhos aos governantes mundo afora. A virtude é, portanto, segundo esta filosofia, consequência da busca pelo aperfeiçoamento pessoal em serviço dos outros, os quais, por sua vez, retribuem igualmente com virtude ao líder. Esta contrapartida é que nos faz falta hoje em dia.

E o que isso tem a ver com atravessar a rua em Saigon?

Quando o garoto ocidental sai de casa, ainda cheio de espinhas, para "ganhar a vida" (como se fosse questão que se pode perder), ele sai em uma busca egocêntrica, regada de mais folclore popular como o mais estadunidense dos ditos: You can make a difference! (traduzindo mais ou menos: "Você pode fazer a diferença"). Começa então uma luta contra a depressão do anonimato em que 99,9% da população inevitavelmente irá cair, caso nao caia na real e perceba a bobagem que tudo isso representa ou seja sorteado para sair na próxima fábrica de celebridades instantâneas de algum Reality Show.

Enquanto o ocidental quer "ganhar" uma briga contra o anonimato, um querendo superar o outro, Confúncio ensina que você deve se aprimorar para melhor servir ao mundo. Enquanto o ocidental só confia em si mesmo - justificado através da desconfiança no outro -, Confúncio propõe que a confiança em ti é consequência da justiça de seus atos, da sinceridade de seus pensamentos. O resultado, aplicado na coletividade, é dedutível: é a projeção de si no próximo. Se você não pensa no próximo, não esperará que ele considere suas necessidades. Por outro lado, se todos pensam com sinceridade, se todos mantêm o coração reto, existe confiança no próximo. E só assim existe entrega.

Pois assim é atravessar a rua em Ho Chi Minh City. Basta atravessar, devagar, sem hesitar, sem se preocupar com o que vão dizer, pensar ou fazer, com apenas uma certeza: todos tem a intenção de fazer o possível para desviar de você, assim como eles gostariam que você o fizesse; ninguém se preocupa de julgar se você está atravessando no lugar correto ou não; não importa se você é branco ou preto; não faz diferença a roupa que você leva posta; simplesmente todo mundo está coletivamente sinceramente engajado no bem estar do próximo. Em suma: todo mundo se preserva.

É assim que, estranhamente, ao atravessar as caóticas vias de Ho Chi Minh City, me vem uma sensação de paz; como um animal selvagem que subitamente não tem mais predador.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Olho no Olho

Quem aí conhece o Camboja?

O que colocou o Camboja na rota do turista mundial foram as impressionantes ruínas de meados do século VIII e IX da civilização Khmer. É o sensacional complexo de Angkor, no noroeste do país - para os mais roliudianos, tem uma cena de Tomb Raider nas maravilhosas ruínas tomadas pela selva. Enfatizo turista "mundial" porque creio que foi o primeiro sítio em que a presença massiva de orientais - leia-se olhos puxados - supera os ocidentais. A geografia colabora - estamos ao lado de China, Japão, Coréia do Sul, países orientais com poder aquisitivo - e a geopolítica também - o passado dos povos próximos intersecta e cria interesse.

Fomos então à Angkor. Enquanto admirava as obras do ápice da civilização Khmer, algo que inevitavelmente roubava a atenção eram as hordas de turistas apressados que devoravam os templos - com apetite consumista de madrinha em véspera de natal - e que me pareceram estranhamente familiares: uns 20 ou 30 orientais chegavam correndo com suas viseiras, cobertos de roupa da cabeça aos pés - inclusive luvas -, não obstante o calor fumegante de meio-dia, entravam na frente qualquer um ou de todo mundo que estivesse no caminho, o guia vomitava história enlatada, mil flashes brilhavam e vombora pro próximo templo. Surreal.

A convivência no sudeste asiático ainda não me bastou para discernir os povos da região pela fisionomia, mas aquele comportamento estranhamente familiar não deixava dúvidas: eram os chineses, os mesmos que conhecemos no Tibete.

Mas o que fez o país entrar nos livros de história foi uma outra faceta, que mancharia de vermelho a palavra que designa a etnia maioritária e dá nome a moeda local, com um dos maiores genocídios do século vinte - talvez páreo apenas para Stálin, Hitler e Ruanda. O massacre cometido pelo Khmer Rouge (Khmer "Vermelho"), sob a liderança de Pol Pot e patrocínio declarado da China de Mao, dizimou, dizem, 25% da população do país entre os anos de 1975 e 1979 (corresponde a aproximadamente 2 milhões de pessoas!), sob a égide de um retorno às raízes agrárias. Intelectuais, profissionais liberais, mulheres, crianças, muita gente, sem a menor atividade política, mas pelo mero fato de possuir uma empresa, uma terra ou um diploma, era tachada inimigo da revolução. Ou seja: presa, torturada até confessar crimes contra o estado - na maioria das vezes falsas confissões extorquidas à força para mostrar serviço ao chefe - e assassinada, atirada em valas.

Fomos então à Phnom Penh, capital do país, conhecer esta história. Um dos testemunhos mais "vivos" é o memorial "Killing Fields" de Choeung Ek, nos arredores da capital: em um campo onde foram assassinados cerca de 17.000 homens, mulheres e crianças, os sobreviventes ergueram uma grande "stupa" (monumento religioso budista) com cerca de 8.000 crânios (desenterrados do campo) aparentes, exibidos em "andares" que diferenciam faixa etária (estimada), evidente no tamanho dos crânios. Uma forma marcante de encarar de frente o que aconteceu, sem muita abstração ou simbolismo, comuns na arte contemporânea e, particularmente, nos conhecidos subterfúgios da publicidade.

Na mesma pulsação - ou seja, congelada - e na mesma cidade - Phnom Penh - um outro museu exibe ao visitante o que foram os porões da revolução maoísta do Camboja: S21. Uma escola secundária que, convertida em câmara de tortura coletiva e massacre de presos, chegou ao cúmulo de registrar cerca de 100 mortos ao dia em meados de 1977. Seus registros escritos e fotográficos cuidadosos, os testemunhos coletados de parentes ou de um dos 7 (sim, sete!) sobreviventes e o depoimento sinistro das celas, instrumentos de tortura, manchas de sangue na parede, são suficientes para calar os visitantes, estupefatos.

Sempre atento tanto ao turismo quanto aos turistas, notei que havia gente de todo lugar. Como sempre a presença massiva de europeus, seguidos por estadunidenses, cambojanos, sul-americanos, australianos, uma chilena e um brasileiro. No entanto, não importante a nacionalidade, parecia impossível para um visitante olhar no olho do próximo. Era como se um sentimento de vexação profunda tomasse conta da raça humana ali presente, pairando no ar a questão: quem foi capaz de fazer isso? Minha raça?

Curiosamente, o que não vi em S21 - nem tanto que fizessem tanta falta - foram as apressadas hordas de chineses.

Shiva e os Trotamundos

Do criativo caleisocópio de deidades hinduístas, várias chamam a atenção do desavisado turista quase-católico: Shiva é o deus onipotente com olhos amendoados e muitas facetas representadas nos milhares de templos em sua homenagem; Ganesh é o filho de Shiva com Parvati e porta uma curiosa cabeça de elefante - diz a lenda ter sido remendado após ter a cabeça humana decepada injustamente pelo deus-pai; Hanuman, o deus-macaco, líder do exército que libertou Sita, amada de Rama, heróis do Ramayana, épico que permeia não apenas a sociedade indiana, mas o sudeste asiático e sabe-se lá onde mais; tem outros famosos como Vishnu, Krishna e tantos e tantos outros.

Mas não sou especialista e não pretendo me aprofundar no tema, mas chamar a atenção para uma outra característica de Shiva: um de seus principais papéis no panteão hindú é representar, simultaneamente, a criação e a destruição, uma espécie de Athena multi-braços. O conceito, nada novo, de que a energia criadora é também destruidora, recorre em diversas mitologias e religiões - o católico tem, na arca de Noé e no apocalipse bons exemplos do poder de destruição do criador. Ninguém, no entanto, compreende estas ameaças melhor do que o pescador, cujo provedor - que alimenta suas famílias - e provador - que ameaça constantemente sua vida - é o mesmo mar.

Logo lembro da laboriosa mandala de mais de 3 metros de diâmetro em que trabalhava um grupo de monges budistas no Tibete: de três a quatro semanas, de seis a oito pessoas se esmeravam para desenhar uma mandala de areia - um trabalho tão lindo quanto minuncioso - para, após o festival que motivou sua elaboração, destruí-la, com não mais que um sopro. O intuito, para os ascetas, é exercitar o desapego com as coisas efêmeras, exercitando e aceitando que o poder da criação de coisas materiais - ainda que obras de pura arte - é parte da vida passageira pela existência humana, reservando desta forma suas energias para o aprofundamento na vida espiritual.

Assim como os monges budistas do Tibete, quem deixa para trás conquistas materiais - conforto, posição social, posição profissional, status intelectual, rede de amigos, negócios, casa, carro -, optando por se aventurar mais na vida está, fundamentalmente, exercitando sua capacidade criadora e destruidora, o Shiva que temos dentro de nós. É como o exercício da mandala: não importa aquilo que se cria; importa a capacidade criadora. Esta é a conexão entre o criador e a coisa criada, não a coisa em si.

Desfazer uma casa é um saudável exercício de desapego. Mesmo quem não precisa mudar de país ou mesmo bairro, sugiro mudar de casa só por esporte. A gente é obrigado a reavaliar a montanha de "coisa" que acumula, algo que na sociedade capitalista alguns confundem por "riqueza". E que, não necessariamente, por ser o fulano mais rico que cicrano, ele acumula mais coisas. É uma questão de opção. Ao final, tudo converge para uma simples questão: onde vamos ou devemos direcionar nossas emoções? Em um desenho de infância ou um almoço com os pais? Em uma estante da bisavó quatrocentona ou na avó que passa o dia à espera de um telefonema do neto? Comprando um carro novo ou viajando com a família com o carro velho? Guardando a bola nova (porque é cara e linda e você não quer gastá-la) ou metendo na lama pra jogar com os amigos?

Emoção, afinal, pode ser arquivada? Ou deve ser exercitada?

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Havaiana Tailandesa Paraguaia

Não tem por que mentir, sou patriota mesmo. Talvez não seja cego e incondicional como o recém-apaixonado ou obcecado e ufanista como o petroleiro texano, mas gosto pacas de meu país. Gosto da mistura fina de ginga com determinação e criatividade de famílias famintas, sem-trabalho, sem-terras, sem-tetos; de malandragem à toa com a pureza de espírito humilde de tanta gente sofrida; de praia, carnaval, feijoada, samba, mulata, futebol, caipirinha, bem que nem exalta todo o pacote de turismo internacional vendido na Europa. Gosto do doce da jaboticaba e do azedo da carambola. Mas acima de tudo gosto do jeito imperfeito como o brasileiro, sempre de maneira original e improvisada, dá algum jeito de andar, brilhar, suceder, enfim, digamos, funcionar. Gosto e muito me orgulho de, onde quer que esteja, dizer de onde venho.

Brasileiro que põe o pé na estrada, no entanto, já sabe: sua embaixada oficial é e será talvez por muito tempo o futebol. E no futebol, somos reféns dos "erres": Ronaldos, Romários, Rivaldos, Robinhos e outros. Exceto na Índia, onde incrivelmente ninguém nem sabe o que é futebol. Lá, nos faz falta um craque de críquete ou ás no hóquei na grama. A referência tupiniquim na Índia, curiosamente, é Aquarela do Brasil, que anda de moda - certamente uma versão remix que nós graças a deus não tivemos a oportunidade de escutar.

É claro que eu preferia que, acompanhando o futebol, viesse o resto do pacotão com a nossa música, nossa literatura, nosso povo, nossa natureza. Que todas nossas virtudes fossem tão exitosas no mainstream mundial quanto as estripulias do Ronaldinho Gaúcho com uma pelota.
Mas nem um nem outro.

O que pega hoje em dia são nossas célebres flip-flops.

Bangkok é famosa, assim como muitos outros entrepostos comerciais modernos na Ásia, por oferecer produtos baratíssimos, porém fajutos. Se a China tem orgulho de ser tosca - cultura do 1,99 -, Bangkok recebe turistas do mundo inteiro e de todas as idades, que vem passar férias nas belas praias do sul, com uma oferta invejável de produtos de marcas famosinhas pra turista paga-pau consumista como Armani, Gucci, Rai-Ban. Tem até opção pro mochileiro, que também tem seu ladinho paga-pau consumista: North-Face, Lowe Alpine, Doite, Birkenstock etc. Evidentemente que tudo muito barato. Evidentemente que tudo (muito) falsificado.

No meio desse paraguai asiático, saio para comprar uma sandália, já que meu último par de havaianas metamorfoseadas ficou em algum rincão da praia de Mananjary em Madagascar. Desde lá não tive necessidade das legítimas, graças ao clima invernal do nosso roteiro - desde meros 14, 15 graus em Kathmandu ou Delhi até os horrendos -25 do alto Tibete (vai botar havaiana com este clima!!!). Fui às compras.

Percorrendo a famosa Khao San Road, rua da turistada boêmia, tento concentrar-me na sandália, em meio aos milhares de sons, luzes, gente, vendedores ambulantes, motos, mais gente, tuc-tucs e vendedores de insetos fritos. Tinha o nobre objetivo de adquirir meu calçado oficial pro verão. Eis que, espremendo os olhos pra ver melhor, avisto, ao longe, para meu assombro e satisfação, pares de havaianas exibidas lado a lado, bonitinho, que nem loja da Teodoro Sampaio, com diversas cores e um par de diferentes desenhos, inclusive o exitoso modelo com bandeirinha do Brasil.Se isso não bastasse para me encher de orgulho, pergunto o preço - escondendo a cara de guloso para poder barganhar direitinho.

- "Fór Doláh" (Four Dollars com sotaque tailandês).

Hmmm... Olho de perto e qual não é a minha satisfação em descobrir que, finalmente, após séculos de economia extrativista, temos um produto industrializado que não apenas é exportado para Europa, onde é vendido por muitos e muitos euros, mas é também falsificado e vendido no meio de tantas marcas famosas na movimentada e cosmopolita Khao San Road!
É assim que, hoje, caminhando na areia de uma praia vietnamita, encho o peito de orgulho e olho soberbo o resto do mundo do alto de minha havaiana (meio cabeçuda e com uma bandeira nacional bem migué), como se só brasileiro tivesse o direito de vestir havaiana tailandesa paraguaia.