terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Atravessando a Rua, Cruzando o Mundo

Atravessar uma simples rua em Ho Chi Minh City (vulga Saigon) é um verdadeiro ato de fé. É colocar-se à mercê de mil motonetas e bicicletas zunindo na mão e contramão, no farol verde ou vermelho; à mercê de motoristas nunca antes vistos e que você certamente nunca verá de novo na metrópole de quase 10 milhões de habitantes. Por irrelevante que pareça, é um pequeno ato cotidiano que simboliza uma das diferenças fundamentais de estrutura de pensamento entre oriente e ocidente. Ou, ao menos, entre São Paulo e Sai Gon.

A sociedade ocidental vem corrompendo, há séculos, a idéia de comunidade. É um processo de viagem egótica que começa pelo enfraquecimento do Estado como provedor dos subsídios fundamentais ao cidadão e culmina na desestruturação familiar, seja no excesso de divórcios, seja no hábito de mandar os filhos pro mundo com um sonoro "se vira" após a maioridade. Dou exemplos: os estadunidenses estão acostumados a cursar faculdade em qualquer estado salvo o estado natal, com um propósito de uma espécie de liberação exacerbada ou puberdade tardia - em uma sociedade hipócrita em que, com menos de 21, é muitas vezes mais fácil acessar maconha, coca ou crack que cerveja; os europeus vão trabalhar de garçom, gari, secretária, empacotador de supermercado, qualquer coisa para financiar sua faculdade, vivendo sozinho a partir dos dezoito; na América Latina a família persiste a duras custas, pai e mãe custam a desprender do rebento, mas quando o filho emancipa, é sempre "um orgulho".

Qualquer que seja a forma que toma, este processo de emancipação do indivíduo nas sociedades capitalistas do ocidente leva o sujeito a reforçar o egocentrismo como estratégia de sobrevivência, ratificando o futuro que se espera dele. É uma sociedade em que ninguém pode depender de alguém. Ou, em termos mais popularescos, é "cada um por si".

Neste contexto, o indivíduo se sente compelido a controlar o ambiente em volta, sob pena de, se não o fizer, ser controlado por outrem. Me apoiando novamente na cultura popular: se você não sabe quem é o trouxa na roda, o trouxa é você. É uma crise generalizada do altruísmo e da confiança no próximo, provavelmente consequência do anonimato bastante próprio da metrópole e do hedonismo que Baudelaire celebrava na figura do hedonista dandi na Paris do século XIX.

E o oriente?

A religiosidade vietnamita é uma fusão de taoísmo com filosofia budista e uma boa pitada dos ensinamentos confuncionistas. Confúncio dizia que para governar um reino, há de se ordenar os estados; para ordenar os estados, há de se regular a família; para regular a família, há de se cultivar a pessoa; para cultivar a pessoa, há de se rectificar o coração; para rectificar o coração, há de se ter pensamentos sinceros; para ter pensamentos sinceros, há de se estender o conhecimento ao máximo; para estender o conhecimento, há de se investigar as coisas. Logo, investigando as coisas, estende-se o conhecimento, que leva a pensamentos sinceros, e assim por diante, para por fim ilustrar o reino com virtude.

O caminho proposto por Confúncio parece, à primeira vista, o caminho do individualismo ("cultivar a pessoa"), mas o fim proposto, coletivo, é o de se regular a sociedade justamente. O propósito do trabalho de Confúncio é promover a ética no Estado, em qualquer Estado, por isso, em determinado momento, o sábio dedicou sua vida a viajar oferecendo seus conselhos aos governantes mundo afora. A virtude é, portanto, segundo esta filosofia, consequência da busca pelo aperfeiçoamento pessoal em serviço dos outros, os quais, por sua vez, retribuem igualmente com virtude ao líder. Esta contrapartida é que nos faz falta hoje em dia.

E o que isso tem a ver com atravessar a rua em Saigon?

Quando o garoto ocidental sai de casa, ainda cheio de espinhas, para "ganhar a vida" (como se fosse questão que se pode perder), ele sai em uma busca egocêntrica, regada de mais folclore popular como o mais estadunidense dos ditos: You can make a difference! (traduzindo mais ou menos: "Você pode fazer a diferença"). Começa então uma luta contra a depressão do anonimato em que 99,9% da população inevitavelmente irá cair, caso nao caia na real e perceba a bobagem que tudo isso representa ou seja sorteado para sair na próxima fábrica de celebridades instantâneas de algum Reality Show.

Enquanto o ocidental quer "ganhar" uma briga contra o anonimato, um querendo superar o outro, Confúncio ensina que você deve se aprimorar para melhor servir ao mundo. Enquanto o ocidental só confia em si mesmo - justificado através da desconfiança no outro -, Confúncio propõe que a confiança em ti é consequência da justiça de seus atos, da sinceridade de seus pensamentos. O resultado, aplicado na coletividade, é dedutível: é a projeção de si no próximo. Se você não pensa no próximo, não esperará que ele considere suas necessidades. Por outro lado, se todos pensam com sinceridade, se todos mantêm o coração reto, existe confiança no próximo. E só assim existe entrega.

Pois assim é atravessar a rua em Ho Chi Minh City. Basta atravessar, devagar, sem hesitar, sem se preocupar com o que vão dizer, pensar ou fazer, com apenas uma certeza: todos tem a intenção de fazer o possível para desviar de você, assim como eles gostariam que você o fizesse; ninguém se preocupa de julgar se você está atravessando no lugar correto ou não; não importa se você é branco ou preto; não faz diferença a roupa que você leva posta; simplesmente todo mundo está coletivamente sinceramente engajado no bem estar do próximo. Em suma: todo mundo se preserva.

É assim que, estranhamente, ao atravessar as caóticas vias de Ho Chi Minh City, me vem uma sensação de paz; como um animal selvagem que subitamente não tem mais predador.

1 comentário:

Anónimo disse...

Sociedades sábias são outra coisa.

Mas enquanto você estiver encarnando o espírito oriental e atravessando a rua à pé, espero que nenhum ocidental tenha resolvido alugar um carro por aí!!

abs!