Deixamos Mui Ne, no litoral sul vietnamita, enjaulados em um assento-cama claustrofóbico em que sequer se podia viajar sentado, cercados de estruturas metálicas, no que estava mais para um bagageiro que para um passageiro. Seis horas e seis cãimbras mais tarde, descemos na cidade de Nha Trang - um apanhado de resorts pra gringo que não nos interessou parada mais séria - para trocar de ônibus - teoricamente um veículo melhor para passar a noite - para seguir direto à colonial Hoi An, acertadamente apelidada pelos amigos Zero e Aline de "Parati Vietnamita". Dez horas de viagem nos esperavam pela frente. Vacinados pela experiência da jaula do primeiro trecho - em que fomos os últimos a embarcar -, corremos na primeira chamada e pegamos, se não o melhor dos lugares, assentos aceitáveis. Logo depois demos conta que quem não correu ficou sem. Pois é: overbooking no ônibus.
Isso seria irrelevante se os que ficaram de fora não fossem, todos, grupos de vietnamitas com crianças voltando às suas cidades natais para celebrar o Têt - ano novo do calendário lunar - com suas famílias. Na verdade este detalhe também seria irrelevante se a companhia de ônibus houvesse dado solução decente ao impasse em vez de tentar arrancar com o ônibus. O resultado foi osso-duro: os caras deitaram na frente do ônibus para evitar a partida, tipo desobediência civil. Fiquei imaginando - com dó dos combatentes teenagers estadunidenses arremessados aqui nos idos de 60 e 70 - do que esse povo é capaz quando o assunto é soberania nacional.
Detalhes à parte, o impasse seguiu por cerca de três horas, independente de nossas infames tentativas de mediação, mais ou menos incisivas, mais ou menos inflamadas. No frigir dos ovos, ainda mantendo o humor, resolvi sentar no assento do ônibus fingindo que iria tomar o lugar do motorista e levar o ônibus adiante, uma piadinha que me parecia cabível. Qual não foi minha surpresa quando o motorista original me puxou do assento e me empurrou contra a parede do ônibus com tamanha brutalidade que, impulsivamente, o empurrei de volta e o clima esquentou, ambos com punhos cerrados...
Viajar é, entre tantas outras definições - provavelmente melhores que a seguinte - buscar intersecção entre culturas, acrescentar novos costumes à própria cultura ou ainda apenas conhecer e procurar respeitar a diferença. É impossível, no entanto, quando em ambientes desconhecidos, evitar completamente os conflitos. Eles acontecem, por vezes não se sabe nem donde vieram nem se pode prever os desdobramentos. O tal conflito pode ser consequência de choque entre culturas - um simples cafuné pode ser gentil no Brasil e ofensivo na Tailândia; ou pode ser simples ignorância dos hábitos locais - deixar os calçados ao entrar em um templo é algo tão óbvio no oriente como usar papel higiênico no ocidente.
Em suma, muitos possíveis - e, em alguns casos, prováveis - conflitos são consequência de "diferenças culturais" entre visitante e visitado.
No entanto, de tantas definições que viajar pode ter, uma coisa é certa: viajar não é um parênteses. A vida continua enquanto a gente viaja, e conflitos normais do dia a dia podem surgir em lugares que não em nossa casa, nosso trabalho, nossa cidade. Isto é verdade particularmente no caso de uma longa jornada em que viajar torna-se rotina após alguns meses. Dinâmica; não obstante, rotina. Aquela paciência extra do turista de férias, pronto a relevar o atraso do avião, o pedido que veio errado no restaurante ou a falta de água quente no banheiro, tudo em prol de "não esquentar a cabeça para não estragar os poucos dias de férias", vão pro beleléu no segundo mês de uma viagem mais extensa.
Muitas vezes a primeira reação pode ser excessivamente ativa - levar o conflito a sério sem medir a circunstância com cautela - ou excessivamente passiva - jogar a culpa de tudo nas chamadas "diferenças culturais", bode expiatório favorito do viajante.
O segredo para nós tem sido buscar o discernimento, diferenciar o diferente do folgado, o diferente do grosso, o diferente do sacana, o diferente do malandro, o diferente do bandido. Inclusive porque muitos se apóiam neste discurso para enganar o turista: "Ah, aqui é assim que funciona! Pague mais 10 dólares" - aproveitando que o turista é, afinal de contas, apenas um turista, com seu conhecimento superficial de (Not-So) Lonely Planet sobre o país.
O visitante, ao deparar-se com um conflito como tais, deve sempre manter a calma e diagnosticar cautelosamente, procurando identificar a tênue linha entre o que é Cultura e o que é Usura.
E, muitas vezes, humildemente, por a viola no saco e pedir sinceras desculpas, preferentemente no idioma local, em troca, quiçá, de mais um amigável sorriso vietnamita de um cozinheiro, monge ou um motorista de ônibus.
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1 comentário:
Fotos lindas. Textos sensacionais. Dá um livro incrível, hein, Celo.
Quero com autógrafo!
saudades e desejo de uma jornada esplêndida.
namastê
Klaus
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