Em um prato de porcelana muito do humilde, a vietnamita organiza pacientemente folhas de hortelã, enquanto o irmão prepara um molho de soja com pimenta. Em seguida, ela dispõe os dois pauzinhos e um guardanapo na mesa, enquanto o irmão picota, com uma tesoura por instrumento, um feto de pato caramelizado no meu prato.
Eu havia saído só, bancando de agente de turismo, para organizar os próximos dias, enquanto a Maca, de molho curava uma gripe - lembrança de inverno das montanhas na fronteira com a China. Meu passeio não tinha, portanto, grandes ambições culturais, até que, após comprar ingresso para o famoso teatro de marionetes na água de Hanoi, os avistei: pequeninos, alinhados lado a lado em uma barraquinha ambulante, os fetos de pato, famosa iguaria regional, chamavam a atenção pela cor forte e pelo aspecto, não precisa nem dizer, pouco convidativo.
Convidado ou não à ocasião, perguntei o preço como quem faz isso todo dia, esforçando para conter algo que não sei se chegava a ser ansiedade ou apenas ânsia...
Estranho foi que, após tanto tempo viajando grudado à Maca, estar sozinho experimentando uma bizarrice destas pareceu experimento incompleto. Torci para passar um conhecido. Vi umas israelitas que havíamos trocado duas palavras num restaurante e quase chamei para testemunhar, tirar foto e mandar por e-mail e tal. Foi quando me dei conta que a minha inquietação era porque não tinha como registrar a aventura com uma câmera, havia deixado no hotel. Sorte dos mais sensíveis; e da Maca, que talvez nunca aceitasse meus lábios de volta.
Mas o que ficou rondando minha cabeça, enquanto testava minha destreza nos palitinhos mergulhando meu lanche no molho de soja com pimenta, foi a infantil necessidade que senti de registrar o feito, digo, o feto, com uma foto.
E ponderei: que doença é essa que nos atinge? Por que a gente tem que tirar uma foto, mostrar pra todo mundo? Afinal, experimentamos, viajamos, criamos, pensamos, trabalhamos para os outros ou para nós mesmos?
Quando cursamos uma faculdade ou um curso, recebemos um diploma atestando, para fins legais, a aprovação, demonstrando à sociedade que você, dentro das regras vigentes, é capaz de exercer aquela profissão. É uma evidência legal - pendura-se o diploma de pele de carneiro na parede para sustentar o argumento e o ego do profissional. Da mesma maneira, quando "conquistamos" o Kilimanjaro, recebemos um simpático diplominha com o feito. É um atestado, no entanto, que não serve para nada senão para mostrar pros netos. Afinal, o que um diploma acrescenta em uma jornada sumamente pessoal?
No caso do feto, a evidência, o diploma, era a foto que não tirei. A dúvida foi: para quê ou para quem eu estava me aventurando? Lembrei de quando critico o turista chinês que consome os lugares por onde passa como se cada foto fosse uma missão cumprida e a viagem fosse uma contínua To do List (lista de "Coisas a fazer"). É como se não havendo foto não houvesse visita, não houvesse evidência, atestado, diploma para mostrar à sociedade.
Concluo o raciocínio me desligando da câmera e me concentrando no prato e no pato. Desfruto inteiramente seu exótico sabor sem dar mais satisfação e parto contente de volta à ordem do dia: comprar passagem para o Laos.
Agora, no entanto, quando penso novamente em todos estas reflexões sobre a foto do feto, orgulhoso de ter superado o feitiço da fotografia, percebo, um tanto atordoado, que acabo de registrar o feto com um texto.Ao menos a feição do prato eu deixo para a imaginação de vocês.
1 comentário:
Da Cidade, meu filho, esse blog é excelente.
O Morfina sente sua falta.
Boa viagem, jovem.
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