domingo, 21 de outubro de 2007

Memorias do Kilimanjaro: O DIA D

Pé esquerdo. Passo curto. Bastão direito, quase simultâneo. Balance o corpo. Cuido com as pedras. Passo (muito) curto. Não vejo muita coisa. Pisei firme. Respirando, devagar. Pé direito. Bastão esquerdo, quase simultâneo. Whitey canta Whitney: l will always love you..ouououu... Balance o corpo. Pisei firme. Olho o alto, ainda alto. Luzes caminhando num horizonte distante respondem que sim, muito alto, e como! Ai... dor de cabeça! Pára, respira. Olho para baixo. Luzinhas indicam que andei muito, estou alto, muito alto. Pé esquerdo, passo (mais) curto (ainda) para recomeçar. Bastão direito, quase simultâneo, mais força no braço: a perna já falha, as costas trincam e os dedos da mão congelam. São quatro da manhã. Quinze graus negativos. Estamos subindo no escuro, na altitude e no frio há mais de quatro horas e ainda faltam outras três e tanto. Meus pés congelam. Dor de cabeça! Náusea, acho que vou vomitar! Pára de pensar... Apenas ande, diacho: Pé direito. Bastão esquerdo, quase simultâneo. Cuidado com as pedras. Mais força no braço que a perna tá falhando. Respira com calma. Pela boca mesmo, pouco importa a cirurgia de septo pra respirar melhor. Septo? Ai! Cabeça... Pára de pensar!!! Pé esquerdo.. passou um minuto. Faltam três e tantas horas menos um minuto. Ai, minha cabeça! Pára de pensar! Bastão direito, quase simultâneo... Whitey canta Hakuna Matata, means 'no worries'...

Sempre fui apressadinho. Sempre fui o primeiro a terminar o dever de classe. Minha mãe era mãe feliz, nunca tinha que cobrar que eu fizesse o dever de casa após o almoço, pois, como mostrava no começo da dita 'vida acadêmica', já havia feito em classe; enquanto a professora escrevia na lousa, explicava e tudo mais, eu já tinha copiado e resolvido os problemas real time.

Evoluí a paranóia da eficiência e depois de algum tempo treinando, consegui desenvolver uma técnica impressionante para escovar os dentes e pentear o cabelo - antes de desistir completamente da idéia de pentear o cabelo, uma vez superada a vaidade adolescente. No trabalho, a evolução do computador para o modo multi-tarefa foi a minha realização, o antigo sonho de muitas janelas ao mesmo tempo! Moral da história: sempre fui um cara eficiente, multi-tarefa. Quando Whitey começou com a história de "Pole pole..." (Devagar, devagarinho...) para subir o Kilimanjaro eu pensei em meu passado esportista e subestimei a sugestão, mas resolvi obedecer pensando no bem da Maca. Na noite do 'ataque' ao cume eu entendi o real significado: para marinheiro de primeira viagem, é 'Pole pole' ou nada. Conselho? Deixe a arrogância em casa, você não sentirá falta alguma.

Não sei muito sobre Zen Budismo, mas entendo que muito tem a ver com o desfrute máximo da atividade em curso, não importa a qualidade ou a importância, o glamour ou a indiferença que o resultado de tal atividade possa provocar na comunidade, seja dentro de casa, seja no mundo. Diferentemente do carpe diem hedonista próprio da sociedade pós-moderna, o zen-budismo não prega a busca de atividades prazeirosas para curtir o momento, mas sim prega que toda e qualquer atividade deva ser feita com satisfação e pode e deve ser 'prazeirosa', por mais simples, desimportante ou trivial que pareça - como, por exemplo, lavar a louça ou dar o próximo passo - e deve ser feita com o melhor de si. Aí reside o verdadeiro e simples prazer, e não nos esportes de adrenalina - bungee jump, pára-quedas etc.

Evidentemente a idéia do zen-budismo é muito mais adequada para descrever a filosofia que suportou minha subida ao Kilimanjaro que o hedonismo e a busca do prazer frugal, fácil, roliúdiano - já que, de frugal e fácil, não teve nada, talvez roliúdiano. Cada passo é o máximo que posso fazer agora, cada passo é uma conquista. E olhe que foram muitos passos: 60km em 6 dias, desnível de mais de 4 mil metros de altura, temperaturas de 30 a -15°C, 22 horas de caminhada nas últimas 48 horas da subida, 7hs e meia de subida pura, sem refresco, no ataque ao cume.

Mas mais do que isso: cada passo é o máximo que se podia fazer. Pensei na vida, PÁ!, dor de cabeça. Virei para ver algo, POU! náusea... vou conversar com alguém na trilha HMMM... vontade de vomitar. Então era cabeça baixa, Pole pole, muita fé em algo e algo de fé no guia. Fé: aquela forcinha interior que ninguém sabe de onde vem, que em nosso caso contava com uma ajudinha externa que era nosso guia alto astral: Whitey, o rei do Kili, que cantava Guantamera com sotaque Swahili a plenos pulmões, enquanto todos procurávamos onde ele estava achando todo aquele ar.

1 comentário:

Del Nero disse...

Fácil!

"Ô maldito, para de cantar e deixa o ar pra gente!!"

Mas como diria Pessoa, o Fernando, tudo vale a pena se a alma não é pequena (é uma merda quando você sente que uma poesia é clichê), e agora entendi o que vc quis dizer com o perrengue!!

abs!