Do criativo caleisocópio de deidades hinduístas, várias chamam a atenção do desavisado turista quase-católico: Shiva é o deus onipotente com olhos amendoados e muitas facetas representadas nos milhares de templos em sua homenagem; Ganesh é o filho de Shiva com Parvati e porta uma curiosa cabeça de elefante - diz a lenda ter sido remendado após ter a cabeça humana decepada injustamente pelo deus-pai; Hanuman, o deus-macaco, líder do exército que libertou Sita, amada de Rama, heróis do Ramayana, épico que permeia não apenas a sociedade indiana, mas o sudeste asiático e sabe-se lá onde mais; tem outros famosos como Vishnu, Krishna e tantos e tantos outros.
Mas não sou especialista e não pretendo me aprofundar no tema, mas chamar a atenção para uma outra característica de Shiva: um de seus principais papéis no panteão hindú é representar, simultaneamente, a criação e a destruição, uma espécie de Athena multi-braços. O conceito, nada novo, de que a energia criadora é também destruidora, recorre em diversas mitologias e religiões - o católico tem, na arca de Noé e no apocalipse bons exemplos do poder de destruição do criador. Ninguém, no entanto, compreende estas ameaças melhor do que o pescador, cujo provedor - que alimenta suas famílias - e provador - que ameaça constantemente sua vida - é o mesmo mar.
Logo lembro da laboriosa mandala de mais de 3 metros de diâmetro em que trabalhava um grupo de monges budistas no Tibete: de três a quatro semanas, de seis a oito pessoas se esmeravam para desenhar uma mandala de areia - um trabalho tão lindo quanto minuncioso - para, após o festival que motivou sua elaboração, destruí-la, com não mais que um sopro. O intuito, para os ascetas, é exercitar o desapego com as coisas efêmeras, exercitando e aceitando que o poder da criação de coisas materiais - ainda que obras de pura arte - é parte da vida passageira pela existência humana, reservando desta forma suas energias para o aprofundamento na vida espiritual.
Assim como os monges budistas do Tibete, quem deixa para trás conquistas materiais - conforto, posição social, posição profissional, status intelectual, rede de amigos, negócios, casa, carro -, optando por se aventurar mais na vida está, fundamentalmente, exercitando sua capacidade criadora e destruidora, o Shiva que temos dentro de nós. É como o exercício da mandala: não importa aquilo que se cria; importa a capacidade criadora. Esta é a conexão entre o criador e a coisa criada, não a coisa em si.
Desfazer uma casa é um saudável exercício de desapego. Mesmo quem não precisa mudar de país ou mesmo bairro, sugiro mudar de casa só por esporte. A gente é obrigado a reavaliar a montanha de "coisa" que acumula, algo que na sociedade capitalista alguns confundem por "riqueza". E que, não necessariamente, por ser o fulano mais rico que cicrano, ele acumula mais coisas. É uma questão de opção. Ao final, tudo converge para uma simples questão: onde vamos ou devemos direcionar nossas emoções? Em um desenho de infância ou um almoço com os pais? Em uma estante da bisavó quatrocentona ou na avó que passa o dia à espera de um telefonema do neto? Comprando um carro novo ou viajando com a família com o carro velho? Guardando a bola nova (porque é cara e linda e você não quer gastá-la) ou metendo na lama pra jogar com os amigos?
Emoção, afinal, pode ser arquivada? Ou deve ser exercitada?
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1 comentário:
Celo, prá variar suas palavras sempre LINDAS e precisas e assim como disse, EMOÇÃO É PARA SE EXERCITAR, e é o que eu tento fazer a cada dia, me importando com o ser humano e não com o ter humano.
Beijos à vc e à Maca.
Paula.
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