sexta-feira, 23 de maio de 2008

Véia Lôca

Tudo começou com um maldito projeto em que havia de desenhar individualmente os tijolos da escola que estava desenhando para a faculdade de arquitetura. Foi quando desisti do papel e pedi a meu primo Guto que me ajudasse a ensinar Autocad. Em troca, eu o ensinei a manipular imagens e a animar gráficos, coisa que eu andava fuçando na época, junto com o Cândido, pra ver se aprontávamos alguma para os 50 anos da FAUUSP.

O resultado foi uma sociedade chamada Primo com o primo e cujo primeiro trabalho – produção independente – foi uma animação para o Festival do Minuto. “Véia Lôca” foi como o Guto carinhosamente batizou a senil protagonista que tentava, dentro de suas evidentes limitações físicas, atravessar uma rua que, à medida em que ela avançava, parecia crescer mais e mais, enquanto os carros que esperavam a luz verde enfureciam, retorcendo os faróis e rugindo, prontos para prosseguir com a correria urbana, mesmo que por cima da véia.

Lembrei desta história, por acaso, em Cingapura, uma cidade que poderia perfeitamente ter servido de cenário para a epopéia de um minuto da Véia Lôca: frenética, business-like, repleta de shopping centers e restaurantes, Cingapura é uma metrópole em que tudo funciona na base da regra – quase igual à Índia. Rapidamente fica claro: quem fugir à regra será punido. Mas por punição não me refiro apenas às famosas multas milionárias. Existem outras sutilezas que as metrópoles da eficiência como Cingapura e São Paulo não permitem e fazem questão de expurgar.

Estava passeando com a Maca em uma das grandes e largas avenidas quando vimos o semáforo de pedestres anunciar: vou fechar. Na primeira piscada do homenzinho vermelho, avistei nada mais nada menos que.... ELA!! A Véia Lôca!!!

A velhinha, como se ignorante do que se passava em volta, avançava lentamente pela segunda de cinco pistas quando os carros já rugiam. Não precisou muito para que eu visse, imediatamente transposto da tela à realidade, a animação que fizemos: os carros franzindo as sombrancelhas, os motoristas impacientes com a primeira marcha engatada, paulatinamente escorregando o pé da embreagem, com a cabeça sei lá em que lugar e em que reunião para a qual estavam todos certamente atrasados.

Mas a velhinha não tinha como acelerar.

Vendo o hiato da situação, na segunda piscada do homenzinho vermelho, fui de encontro à velhinha, mesmo consciente de que seguramente há uma caríssima multa por cruzar no farol vermelho para pedestres, para assegurar que ela não tivesse o mesmo cruel destino que Guto e eu demos à heroína do Festival do Minuto – ou melhor, ficou aberto à interpretação, mas tinha sangue no meio...

Acompanhei a velhinha, como que pedindo desculpas aos motoristas ou sei lá o quê, mas ao menos chamando a atenção deles para aquele bichinho indefeso que cruzava agora a terceira de cinco pistas.

Lá pela quarta pista, sem saber muito qual seria sua reação, tomei sua mão, para que se sentisse segura, como quem diz: “Não se preocupe, Véia Lôca, eu já te conheço de outras travessias!”.

Enquanto suspirava aliviado na quinta e última pista, notei que o motorista da furgoneta que aí aguardava gesticulava com reprovação e eu tentava, com um mesmo olhar, explicar a situação e perguntar ironicamente se ele queria que eu a levasse no colo, porra.

Só quando chegamos em terra firme foi que percebi um chinês – agora podia notar que a velhinha era igualmente chinesa – caminhando decidido em minha direção com a mão estendida. Vai me algemar, pensei. Se não por atravessar no farol vermelho, então por dar a mão à uma senhora de respeito sem autorização ou, por último, por ofender o motorista da furgoneta com um olhar irônico. Sei lá se ironia também é proibido em Cingapura.

Mas a mão estendida apertou fortemente minha mão e disse com um inglês humilde: “Você está construindo seu caminho para o céu”. Pegou as sacolas que o tinham ocupado, tomou a mãe pelo braço e seguiu seu rumo.

Ah, para aqueles que conhecem e curtem animação e design, a Primo tá de site novo!

3 comentários:

Guilherme Jotapê Rodrigues disse...

Saudade disso tudo.
Da Véia, Da Primo, de vocês...

Acho que o bom mesmo é esse lance de construir um caminho pro céu.

Besos!

caco disse...

ô saudosismo bão.

"só vou pro céu se lá tiver cerveja!"
(quem lembra dessa?)

Anónimo disse...

Meus queridos, educação não é uma questão de cultura, mas de caráter e atitude, que vocês (graças à Deus!!!) têm de sobra, por isso tenho orgulho de serem meus primos!
Como acompanho semanalmente o belíssimo blog, sei que já estão retornando, assim que chegarem avisem, pois o almoço, ou jantar, ou os dois, está de pé.
Beijos, cheios de saudades.
Paula Bartolomei.