segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Regra ou Acordo

Completamos 15 dias na Índia, intensos suficientes para começar com minhas especulações. A forma como as "coisas funcionam" neste país - ou ao menos na pequena porção que estamos visitando - é sensacionalmente original e estranha a nossos modelos ocidentais. Olhamos para Suíça como modelo de organização, Alemanha como modelo de disciplina, EUA como modelo de eficiência, Estados que, aos olhos do Jornal Nacional, 'funcionam'. Olhamos para o Brasil e vemos como a implacável criatividade popular enche de areia estes modelos e a sociedade civil se fragmenta em micro-sociedades paralelas - por vezes nem tão micro -, que poderíamos chamar de marginais, se não fossem maiorias: economia informal, assentamento de terra, sonegação de impostos, PromoCenter e por aí vai. Exemplos um pouco mais cotidianos como pegar uma pequena contramão inocente, esconder uma garrafa de cerveja na hora da conta no boteco, parar em vaga de deficiente no shopping na véspera de natal, ou furar (qualquer) fila, não soam como novidade para nenhum brasileiro. Mas soam como marginal. E tem muita gente cheia de classe criticando, sonhando com o tédio da sociedade que 'funciona'.

Posso dizer que costumava engrossar o coro. Nos últimos 7 anos, entretanto, frequentei o Chile quase como quem tem uma casa em Mongaguá - por motivos óbvios pros que me conhecem - e comecei a me dar conta de que as coisas são mais indissociáveis do que parecem: a música, a cultura, a comida, a criatividade que tanto celebramos - e que estão cansadas de arrebatar prêmio internacional (arte, arquitetura, publicidade, cinema etc.) - andam de mãos atadas com o lado esculachado e improvisado da sociedade brasileira.

Nosso roteiro de África e Ásia acrescentou muita coisa nesta relfexão. Aparentemente - e ocasionalmente - escolhemos um roteiro de entropia crescente. Cada lugar que pousamos parece dotado de uma complexidade maior que o anterior. Posso afirmar, porém, que o futuro não superará, de forma alguma, a Índia. Porque simplesmente não dá, esse lugar é tão inexplicável, quanto delicioso de explicar.

Olhando os modelinhos - aqueles do Jornal Nacional -, o Brasil tá no meio do caminho: o nível de flexibilidade que buracos no tecido social proporcionam - corrupção, informalidade e tal - não são aproveitados por todos, gerando uma constante crise moral. Os que aproveitam se acham apenas parte do sistema, que é falho; os que respeitam se sentem lesados. Mas este tipo de crise moral não vi até agora na Índia. Muito pelo contrário!

Os indianos não tem o menor pudor em desrespeitar regras que, pra começo de conversa, já não são muitas: o trânsito funciona de maneira quase incompreensível e cruzar a rua é sempre um esporte radical; não tem preço em nada, pouca informação aparece escrita; os caras são extremamente dispersos, fazendo mil coisas ao mesmo tempo; evidentemente não tem placa nas ruas; o rickshaw negocia o preço antes de saber sequer aonde você vai; policial pedindo gorjeta; e, por fim, não sei quem foi o idiota que cunhou a expressão 'fila indiana' - deve ser o mesmo que inventou o brasileiríssimo 'pão francês' -, só sei que ele nunca esteve por aqui.

Evidentemente esta descrição não é suficiente nem para uma pitada do curry social indiano. Mas o que conta é que a sociedade que estamos experimentando nestes primeiros 15 dias funciona de um jeito assustadoramente dinâmico, improvisado, altamente caótico e anárquico. Soa ruim?, mas não é.

A regra é um mal necessário de sociedades apolíneas, que funcionam na base da disciplina e do porrete, ou ordem e progresso como defenderiam os positivistas que fizeram nossa bandeira. Quando não se consegue acordo no bom senso, apela-se para a autoridade, para o poder instituído. Basta olhar para os tribunais do ocidente - em particular dos EUA - para ver se é um caminho flexível, com limites evidentes e bom senso comandando as ações. Claro que nâo. Porrete então.

Em uma sociedade predominantemente dionisíaca como a indiana - puta bom humor, pouca preocupação e estresse com o cotidiano, espiritualidade presente, zero planejamento para o cidadão comum - a flexibilidade é fundamental. Mas ela só pode funcionar se vier acompanhada de três ingredientes básicos na personalidade do povo: criatividade para improvisar e tolerância para aceitar o improviso, além de generosidade para aceitar o problema do próximo como seu. Surgindo o imprevisto - coisa previsível que aconteça - o cara não apenas não esquenta a cabeça, como é esperto suficiente para contornar e ainda conta com a ajuda do desconhecido que passa na rua.

Claro que assim parece muito bonitinho. E não é. Não é perfeito, não é fácil, muitas vezes não é agradável - nem pra eles. Mas é diferente. E 'funciona'.

Será que o Jornal Nacional já olhou alguma vez pro lado de cá?

2 comentários:

Anónimo disse...

Olha que bacana!
o Aloisio que não é do campo!

Gosto demasiadamente dos seus textos no Morfina!

Que bom que achei seu blog!

=D

Anónimo disse...

More!
Cuando leo la descripción que haces de la India, tengo esta impresión de "déjà vu" y este déjà vu se llama... Ecuador! Jaja! Tendrá que venir aqui antes de lejos para poder decirme si se parecen los dos países. :)
Un abrazo fuerte!