Começar uma longa viagem se assemelha a perder um ente querido: no ato, idealizamos; logo vem um momento de crise, questionamento deste ideal; até, finalmente, a compreensão profunda de que carregamos em nossos gestos, nosso humor, em cada expressão nossa um pouco de nosso país, nossa gente - ou nossos queridos amigos, parentes.
No princípio é um rompimento forte, que independente de preparação - material e psicológica -, a gente sempre se surpreende quando chega a hora. Se estivesse infeliz no país de origem, vá lá, qualquer mudança parece que só pode melhorar, quase como uma fuga. Mas se a gente sai de uma situação de conforto, "sucesso", algo que se assemelhe à felicidade - ao menos nos moldes daquela novela das oito que começa às dez - a coisa é um pouco diferente. A gente deixa pra trás um monte de coisa boa e ruim, consciente, mas motivado pela fé de que coisa melhor pode vir (Pode também não vir, claro, mas quem não arrisca...). Então, naturalmente, logo após deixarmos a conjuntura para aventurar-nos ao mundo, lembramos fortemente das coisas boas que deixamos para trás: família, amigos, casa, a padoca da esquina, o Soteropolitano, o boteco preferido, por vezes até o trabalho. Assim como quem relembra os momentos bons com o avô: um natal, uma visita no Mato Grosso, um almoço de domingo, uma carta escrita à máquina. O sorriso paterno vem logo à cabeça e as virtudes do velhinho transbordam na emoção e na confusão dos sentimentos. A perda nos estimula tanto o apego que cultivamos à pessoa que esquecemos seus defeitos sem auditar.
Com o tempo, no entanto, a poeira baixa e um ou outro problema na vida te recorda que ele não era perfeito - nem o avô, nem o país. Seja quando abre o globo.com para ver notícias e, em oito meses, a manchete principal nunca foi diferente de Big Brother; seja quando percebe um traço atual de algum defeito do patriarca que você, herdeiro, está perpetuando. Nos dois casos, é instaurada uma crise. Em outras palavras, é quando cai a ficha.
Nesse momento, na viagem, começa a sessão-saco-cheio de nacionalidade, em que eu queria apenas ser um "cidadão do mundo". E bem nessa hora algum insensível vem conversar de futebol só porque sou brasileiro, ou algum (outro) italiano vem dizer em um português sofrível que já foi 10 vezes ao Brasil e conhece mais praias do nordeste que eu - e provavelmente já comeu mais brasileiras também!! Nessa hora, estranhamente, estando de mal com o país, eu só me esforçava para não fazer nada típico brasileiro para não ser reconhecido, senão, já viu, o coro - Ronaldôôô! Ronaldinhôôô! - começa novamente.
Justamente aí que não posso deixar a peteca cair nem para um lado - idealização - nem para outro - desilusão - procurando um balanço saudável, consciente - seria talvez a humanização?
Meu avô não era perfeito? E daí, por acaso eu tenho a pretensão de ser? Meu país não é perfeito? Tanto melhor. Eu que não queria ser suiço...
A humanização do avô que perdi é um processo que passa do apego ao amor. Em vez de preocupar-se com a perda do homem - apego que reflete puro egoísmo, no fundo -, busco amar plenamente o que foi e o que ficou, humanizando o sentimento e mantendo a memória viva, sem mais carne nem osso.
A "humanização" do país por que tenho passado é a incorporação do seu bem e mal, bom e mau, como uma coisa una, parte de mim, que não deve me fazer mais ou menos orgulhoso que o amigo de Malta, o policial chinês ou o guia namibiano. Sem exaltação, ufanismo nem danação, assumo o brasileiro dentro de mim, faço as pazes calmamente, sem muito alarde, e permito à aeromoça alterar deliberadamente meu nome no cartão de embarque: "Brasileiro Santos".
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