domingo, 4 de novembro de 2007

La Grande Île - O Igual e o Diferente em Madagascar

Madagascar é um país bastante original em muitos aspectos: a etnia, as comidas, muitos dos costumes, roupas, música, a cultura em geral permanece preservada. Após duas semanas embrenhado na ilha, não é muito difícil chutar porquês:

Turismo
Madagascar é uma ilha distante do continente africano, em que nem todos falam francês e pouquíssimos arriscam o inglês; em que a infra-estrutura precária faz do transporte convencional uma aventura e da água quente um luxo de poucos hotéis; em que vôos diários conectam apenas com Paris, além de vôos esporádicos para Quênia (semanal), África do Sul e, evidentemente, as fundamentais Ilhas Maurício; em que o surfe e o mergulho, que poderiam ser atrativos, são dificultados pela extensa e perigosa presença de tubarões na costa; em que o ecoturismo e turismo sustentável são expressoes francesas sem equivalente em malagachi.

Política
Um passado de governos primeiramente autocráticos e em seguida com ideais comunistas não muito bem-sucedidos, ligados aos estados socialistas, criou barreiras às tentações do capital ocidental, consequentemente, ajudando indiretamente a preservar o povo da indústria cultural fast-food.

Indústria
Um país predominantemente agrário, com forte cultura comunitária no meio rural, mais ainda insular, faz com que os produtos que a pequena indústria nacional não contempla - como o macarrão francês importado, mais caro que a carne nacional no restaurante e as poucas bolachas em pacote - sejam difíceis de encontrar e caros, dificulta o turista menos afeito a uma aventura gastronômica pelas frituras de milho e trigo, peixes secos, miúdos de galinha e zebu cozido com ervas nunca antes vistas. Maca e eu levamos mais de 10 dias para encontrar um pacote de bolacha salgada fora das grandes cidades - i.e. com mais de 10 mil habitantes - para agradar a dor de barriga que a acompanhou durante os 15 dias de promenade pela Grande Île. Mas o delicioso iogurte de coco do milionário presidente Ravalomanana, por apenas USD 0,30, só é superado pelo equivalente - e mais artesanal ainda - angolano. A Nana sabe do que estou falando.

Economia
Aqui é o único lugar que já vi, no mundo, que fez plano econômico para valorizar a moeda e, em vez de cortar um, dois ou três zeros, dividiu a moeda por 5 - e olhe que sou brasileiro com mais de 30, já passei por um bocado destes planos econômicos mirabolantes contra a inflação. Oras, se já é difícil entender o câmbio e pensar monetariamente em viagem, imagine ter que pensar em duas moedas porque o povo ainda não se habituou. Se eu viesse viver aqui, sem dúvida começaria a vida tentando uma distribuidora de calculadoras baratas a energia solar... A economia agrária e comunitária, embora ajude a maioria a ter comida na mesa, e comida de qualidade, não coloca o país no ranking dos grandes PIBs mundiais. Para o turista convencional - que gosta de conforto, produtos e franquias iguais às de seu país de origem, é um dificultador. Para nós, que buscamos o deslocamento cultural, significa um deleite.

Cultura
Claro que não poderia deixar de mencionar a cultura e o temperamento "malagache". Além da comida já mencionada, o jeito leve, ingênuo, honesto de ser sobrevive, em particular fora de Tana (Antananarivo para os íntimos, capital) e dos demais centros urbanos. Os "tabus", ou fady, são presentes: em um lugar não se come carne de porco - influência muçulmana na costa leste -, em outro tem que tirar o sapato para pisar na praia - cheia de parasitas que habitam os frequentes cocôs e xixis humanos ou de animais. Pessoas têm medo de fotografia e subsistem certos hábitos pouco higiênicos mas ricos em seu folclore que permeiam a agricultura e a cozinha do malagasi. Neste contexto, o vahaza, ou "branco", por aqui, é bicho raro. Passamos por situações pitorescas em que a vila inteira olhava para a gente de forma constrangedora e crianças ficavam com medo se a gente se dirigia a elas. As pessoas ficam curiosas com a gente da mesma forma que ficamos com elas, senão mais. Não obstante, há poucos indícios, fora dos centros urbanos, de qualquer tipo de tentativa de "tirar vantagem", extorquir dinheiro ou furtar ou roubar o turista. Quando nos ocorreu, ou ficou muito evidente - preço do transporte ou do livro de contos na rua - ou fomos protegidos pelo próprio malagasi - preço do transporte novamente e pedágio para cruzar a ponte (!).

Televisão
Talvez todos os outros itens acima sejam ofuscados por este: diferentemente de tantos outros países com contornos econômicos aparentemente semelhantes, o malagasi não tem, ainda, o hábito da televisão. Talvez pela economia comunitária em que muitos apenas subsistem sem muito capital - 5 centavos de dólar aqui é dinheiro, 15 centavos é um bom cacho de bananas na vila e 30 significa uma jaca - bens industriais só desfilam no campo graças a doação do estrangeiro - tipo boné do extinto Los Angeles Raiders. Talvez tudo isso se deva também ao alto custo e baixa disponibilidade de eletricidade: a luz da ilha, quando existe ou funciona, é à base de geradores movidos a combustível. A consequência é uma iluminação sempre precária, quando ela existe, e a escassez de outras "benesses" da eletricidade como a telenovela da Globo - em Antananarivo passa na TV a cabo, bem como, descobrimos, na Albânia, onde o californiano Bret aprendeu albanês assistindo "O Clone"(!!!).


Mas, como diz o título desta crônica, há sempre coincidências que ligam o malagasi ao africano, ao polinésio, ao árabe, ao francês que fomam o povo que habita e visita a ilha. O jeito mora mora de ser (equivalente ao pole pole do swahili: "devagar, devagarinho"): sempre preocupado com o dia presente, sem grande consideração pelo amanhã, com verdadeiro desprezo pelo futuro distante, parece ser uma máxima na África em que estivemos. Não julgo ser bom ou mal, mas que isso traz dificuldades para o viajante como nós, isso é um fato. Exemplo: como na maioria da África setentrional que visitamos, não há horários fixos para o transporte "público". Enquanto esperávamos pacientemente o ônibus (uma velha van Hyundai com bagageiro no teto e bancos do tamanho malagasi) encher para poder sair, percebo que o outro ônibus, de mesma cor - supus, acertadamente, que da mesma cooperativa - iria para o mesmo destino e estava mais ou menos vazio, apenas algumas pessoas. Pergunto quantas pessoas faltam para zarparmos e o sujeito levanta apenas o indicador esquerdo. Sugiro então que ele complete o nosso com um dos passageiros da outra Hyundai vermelha para que possamos prosseguir nossa viagem, enfim, completos. Ele olha com uma cara de espanto, resmunga algo incompreensível e percebo que é melhor deixá-lo só com seus botões. Em seguida ele fala com dois ou três - eles não fazem nada nem tomam decisões sozinhos - e a tática funciona: saímos após alguns minutos para a última viagem de 5 horas nas terras de Madagascar.

Também a influência polinésia e do o sudeste asiático, com suas feições características, aqui se sobressaem no rosto crioulo do malagasi misturado com o negro e outros mais. No entanto, tal como em lugares como Malásia e Tailândia, aqui também nos entristece a infame prostituição (muitas vezes infantil) escancarada nos cabarés das cidades ou nos botecos das vilas. Nada institucionalizado: simplesmente as meninas se aproximam dos turistas e no final da noite pedem uma gorjeta, um agrado. Deprimente, mas muito francês e italiano que aqui vem busca esta "experiência cultural" grotesca.

Mas sem dúvida a coincidência mais legal - e que hoje em dia estou convencido que deve ressoar em todos os cantos do mundo - é crescente indústria informal de camisetas da seleção brasileira: estão por toda parte! Ver um jovem malagasi com a 9 do Ronaldo na festa folclórica Sambatra no sul de Madagascar só não foi mais surpreendente que o guia da pequena cidade de Moshi, na Tanzânia, fã de Zico, que sabia a escalação do Brasil de 82 de cor e salteado.

Se a FIFA recebesse USD 1,00 por cada uma destas amarelinhas, a gente trazia o Robinho de volta pra dar espetáculo na Vila Belmiro. Mesmo que fosse contra o Corinthians.

1 comentário:

Del Nero disse...

Ô meu caro, como tens a coragem de terminar um texto rico desse falando do Corinthians?

Fala de um time da 1ª divisão pelo menos :D

abraço!